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sexta-feira, 2 de julho de 2010

Entrevista (Parte II)

- Mas, me diga, o que o aflige?
- Bom, pra começar, não paro de pensar no “conhecer-se”... está se tornando um hábito... estou... estou... preocupado, talvez.
- Hum – exclamou o entrevistador – mas por que tanto pensa nisso...
- Veja – disse interrompendo o outro – toda religião faz esse discurso, todo mestre prega a mesma filosofia, todo livro de auto-ajuda tem um capítulo sobre o assunto, tudo ser humano cita esta frase numa conversa... mas por que diabos as pessoas não se movem na direção deste conhecimento?
- Olha, tal...
- Não entendo o motivo de tanta hipocrisia, como um assunto pode ser tão disseminado e nunca ser absorvido. O que mais ouço nas ruas e das pessoas que eu conheço é “eu sei, eu sei...”, mas se realmente soubessem, não perderiam mais tempo com nada na vida a não ser o conhecimento de si mesmas.
O entrevistador ficou de cabeça baixa, pensativo, sem contudo perder a fisionomia de intelectual sabido. Segurava o queixo com a mão esquerda e o bloco de perguntas com a direita. O entrevistado estava deitado numa espécie de divã, que na verdade era a sua cama, onde tinha a maioria de suas reflexões. Ficaram calados por alguns minutos e por fim continuaram.
- Quer me dizer por que é que você acha que as pessoas têm que se conhecer, porque é que você pensa que alguém quer isso pra própria vida?
Riu com escárnio, fortemente, debochou da pergunta mas mesmo assim respondeu.
- E por que não?! – exaltando o absurdo – Se todos só falam nisso, por qual motivo não iriam praticar o que acreditam? Por que é que...
- Pare de bancar o tolo – disse em bom som o entrevistador – quem você conhece que pratica o que prega? Quem é que dá atenção a isso? Quem se importa ou não em se conhecer?
As palavras reverberavam pela sala (quarto) até atingirem o nada. Os dois permaneceram em silêncio por, talvez, horas. As sombras da tarde tomavam as luzes da janela. O silêncio se partiu.
- É um caminho de solidão. Sempre ouvi isso também – disse o entrevistado – sempre soube e venho me acostumando cada dia mais. Quando estou escrevendo, quando realmente estou escrevendo, me sinto confortável na presença da solidão. Bem da verdade a prefiro. – levou os braços pra trás, colocou as mãos por sob a cabeça – Começo a perceber o que acho que realmente me importa. Não sinto medo, receio talvez, um pouco de dúvida, mas não penso em voltar atrás.
- Só se sente assim quando escreve?
- Não mais, às vezes quando estou caminhando, lendo, conversando, ouvindo música... eu estou lá em uma tarefa, daí eu começo a prestar atenção... é, é essa a palavra. Começo a prestar atenção na minha respiração e percebo o que de fato estou fazendo. Nisso eu não consigo mais agir normalmente, sabe? Eu começo a me questionar sobre o que está acontecendo ali, naquele instante. Ouço o ruído do ar perpassando minhas narinas e concentro nisso, e se alguma outra coisa acontece à minha volta ou alguém fala comigo, é como se isso não mais importasse. Ali, naquele instante, o que vale é a intensidade com que eu entendo o momento. Penso muito nisso, parece que nada existe, sabe?
Não ouviu resposta. Olhou para trás onde estava, outrora, o entrevistador. Nada mais estava ali além de si mesmo. Mesmo achando estranho, não se incomodou. Já não era a primeira vez, não seria a última.

3 comentários:

  1. "Segurava o QUEIJO com a mão esquerda e o bloco de perguntas com a direita."

    Isso tá certo?!
    À parte isso, não tenho mais nada a dizer, senão: GENIAL! Só um verdadeiro pensador pode expressar de forma tão simples grandes verdades (se as há).

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  2. HAHAHA... verdade, errei feio. Obrigado pela ajuda. Ainda bem que posso contar com amigos como você pra apontar as falhas e tecer tão agradáveis elogios. Obrigado. Abraço!

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  3. O problema do autoconhecimento é que somos essa metamorfose ambulante. Então, estamos sempre diante de nossas estranhezas.
    Por outro lado, essa ignorância pode ser uma bênção: podemos sempre nos "auto-surpreender"...

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