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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Além de nós mesmos

Nota do autor: Este conto ficou guardado durante muito tempo por necessidade. Eu o fiz especialmente para um concurso. Hoje, decidi publicá-lo, mais de três meses depois de tê-lo escrito. De longe é o maior conto que produzi, então, um aviso: são longas doze páginas. Se quiserem se aventurar; boa leitura.



Sabe, pensei em mil formas de contar isso às pessoas, e, mesmo agora, escrevendo nesta folha, eu percebo que não sei exatamente como contar. Estou sentado em minha cadeira há quase cinco dias olhando para este papel em branco sem conseguir encontrar a melhor forma de me expressar. Pode parecer loucura o que eu vou dizer, na verdade, é loucura. Eu mesmo me pego duvidando do que eu vi, pessoalmente, ali, naquele dia como qualquer outro... Quero começar logo e sem mais delongas, então, perdoe-me por qualquer deslize narrativo. Espero que eu não escreva isso em vão e que, se alguém encontrar, saiba o que nos aconteceu...
Eu acordei como em qualquer outro dia e fiz o que sempre faço todas as manhãs antes de trabalhar; levantei, me aprontei, cuidei das plantas, tomei meu café, lavei a louça e saí, exatamente às sete e meia, como todo santo dia. Fui para banca perto de casa, comprei o jornal e de lá fui para o metrô, que eu sempre pegava as oito em ponto, isso quando ele não atrasava, na estação mais próxima. Eu levava pouco menos de vinte minutos pra chegar e fazia questão dessa caminhada de quase dois quilômetros.
O metrô chegou dois minutos atrasado e muitas pessoas entraram comigo quando ele abriu suas portas. Corri para conseguir um lugar e me sentei rapidamente no primeiro banco que eu vi desocupado. Foi ali que tudo começou...
Pois eu estava ali entretido com o meu jornal, lendo uma das manchetes policiais, quando ouvi um trovão sobressair aos ruídos do vagão. O trovão veio acompanhado de outro e mais outro logo em seguida. Demorei uns segundos para notar que começava uma grande tempestade e que todos ali comentavam sobre a repentina tormenta. Olhei para fora e pude ver as enormes nuvens cinzentas fechando o outrora límpido céu azul. Passávamos nesse instante por um viaduto e, pela janela, pude ver os vários raios que riscavam o céu negro. As luzes dos vagões se acenderam tamanha a falta de claridade. Os vidros aos poucos se enchiam de gotículas que escorriam horizontalmente devido ao movimento do metrô. O negrume lá fora contrastava com o alumiar dos raios. Os estrondos foram aumentando e algumas pessoas já davam pulinhos assustados. O que eu mais achei estranho, e que demorei um tempo para perceber, era que a chuva não caía, só uma garoa leve. De repente, um raio caiu a alguns quarteirões de onde estávamos passando e o enorme barulho fez com que todos gritassem assustados. Vários risos nervosos foram trocados, uma espécie de cooperação. Eu estava nessa de rir nervoso quando as luzes do vagão começaram a piscar freneticamente e se apagaram. O escurecer foi seguido de novos gritos. Estavam todos muito assustados. O metrô foi diminuindo a velocidade até parar. Estávamos sem força. Olhei para fora e vi o centro da cidade do alto; o metrô havia parado bem sobre um viaduto. As árvores visíveis dali de dentro estavam todas dançando agitadas pelos enormes ventos. Senti então um frio na barriga, percebi que estava começando a ter medo do que via.
Não demorou muito e uma grossa camada de névoa começou a fechar a visão lá de fora. Um homem comentou atentamente: “não existe névoa em temporais”, e não foi só isso que começou errado. Um barulho no teto do vagão chamou a atenção de todos ali dentro. O barulho foi se intensificando e um outro disse: “está caindo granizo”. Nisso uma senhora se ajoelhou no chão e começou a rezar. Duas outras, mulheres também, seguiram o gesto; o homem que estava sentado do meu lado também se pôs de joelhos. Se eu soubesse o que estaria pra acontecer, juro que estaria ajoelhado rezando. O tumulto foi aumentando, assim como o barulho do granizo bombardeando o teto. As pessoas já estavam gritando umas com as outras. Nisso um homem fardado apareceu e gritou com toda energia “SILÊNCIO!”, e todos se calaram, até as pessoas que rezavam. O silêncio não durou nem três segundos, pois, assim que o silêncio das pessoas se fez, uma das pedras de gelo acertou a janela atrás de mim, estilhaçando-a. Uma gritaria enorme se fez. O povo começou a correr pra não sei onde. Eu só fiquei ali parado olhando para o chão com as duas mãos sobre a cabeça. Um filete de sangue escorreu-me pela face; eu tinha sido atingido por um caco de vidro, bem no topo da cabeça. Minha mão trêmula tateava o ferimento, estava começando a entrar em pânico como todo mundo.
Ouvi alguém dizer: “não façam isso”, e um barulho de vidro se quebrando veio em seguida. A voz gritou mais forte: “não saiam, não saiam”, em seguida um grito de agonia. Criei coragem para olhar o que estava acontecendo e uma senhora, que estava machucada no chão, olhava atônita para uma outra janela que fora arrancada. Era uma das saídas de emergência a senhora balbuciava: “ele caiu, ele caiu...”. Só naquele instante é que eu me lembrei que estávamos sobre um trilho suspenso, uma espécie de viaduto, a parte mais alta de todo o percurso. Acompanhei o olhar da mulher e vi o policial que havia gritado antes, dando ordens para que as pessoas se afastassem das janelas. Ele mesmo estava de costas pra que tinha sido aberta na tentativa de fuga. De repente, uma pedra voou nas costas do policial, acertando-o quase na nuca. O homem desabou inconsciente. O pavor voltou e as pessoas começaram a se amontoar perto das portas de acesso de um vagão para outro. A gritaria começou novamente. Olhei para fora e, pela primeira vez, pude perceber que não dava pra ver nada, além das pedras de gelo que batiam forte nas janelas. Estava tudo enevoado e ficava cada vez mais escuro. Nessa hora, percebi, por uma fração de segundos, que uma mulher, que estava na parede oposta à minha, ou seja, a menos de três metros de mim, se contorcia no banco, segurando com as mãos a enorme barriga. Estava grávida e, ao que parecia, estava sozinha. As pessoas ali não davam conta dela. Assim como não davam conta do guarda ferido logo ali. Pela primeira vez, tomei a iniciativa de me mover, instintivamente, na direção dela.
Assim que eu me levantei, as pernas bambearam e tombei de volta para o assento. Foi aí que eu percebi que também estava apavorado. Eu tremia mais do que tudo. Respirei fundo, senti uma náusea chegando, balancei a cabeça negando a possibilidade de vomitar naquela situação e o que me fez voltar ao momento foi um raio enorme que riscou a paisagem lá fora. O raio fez com que toda a escuridão daquele instante sumisse, como se mil paparazzi acionassem seus flashes ao mesmo tempo. Meus olhos arderam, o que não me custou muito, ao menos minha ânsia de vômito sumira. O pior foi o barulho que veio em seguida, tão alto, que meus ouvidos zuniram forte. E, além de perder o equilíbrio, eu perdi também a noção de tempo. Deixei meu corpo cair do jeito que ele queria, segurando minha cabeça, com as duas mãos a tapar-me os ouvidos. O zunido continuou por não sei quanto tempo; meus olhos, que melhoraram rapidamente, me permitiram ver as pessoas tateando as paredes, tentando se levantar: estavam todas caídas no chão. Ao que parecia, muitas delas tentavam gritar em vão, pois assim como eu, ninguém conseguia ouvir nada naquele instante. Fui-me equilibrando como pude, segurando-me nas barras verticais, até que consegui ficar de pé. Olhei à minha volta e parecia que eu estava bem no meio de um atentado a bomba. Olhei para frente e concentrei-me no objetivo: lá estava ela, desamparada, a dor exposta na face. Caminhei vagarosamente em sua direção e me agachei do seu lado, e fui dizendo:
— Calma, calma... está tudo bem, calma. Eu vou ajudá-la de alguma forma – foi quando eu percebi que eu não tinha a menor ideia do que eu iria fazer.
Ela tentou me dizer algo, mas não fazia muito sentido, parecia mais um gemido do que uma frase. Naquele instante, comecei a fazer uma análise clínica no corpo da mulher, procurando algum sinal de ferimento. Nada, ela estava ilesa, ao menos exteriormente. Dei graças a Deus. Refleti sobre o que eu havia pensado e me indaguei: “onde estaria Ele agora?”.
— Moço, moço... – ela balbuciava com a boca trêmula, e, por mais que eu detestasse sentir isso por alguém, não pude deixar de sentir uma enorme piedade por ela. Seus olhos ainda não enxergavam e ela olhava assustada para todos os lados, como quem busca socorro. Ela era muito linda. Tinha que tirá-la dali.
— Calma, calma... – repeti, mais para me acalmar do que a ela. Estava tentando colocar meu cérebro em funcionamento e assim o fiz. Primeiro disse – Eu estou aqui com você e não vou sair do seu lado – e, dizendo isso, segurei firme sua mão. Isso me ajudou mais ainda: pude sentir a minha confiança. Em seguida, perguntei – Você está sozinha, tem alguém com você aqui no vagão? – ela meneou negativamente a cabeça. Pensei em algo útil a fazer e lembrei do perigo de ficar perto de uma das janelas – Saia daí do assento, se sente no chão, em baixo dos bancos, é mais seguro – ajudei-a a deslizar para baixo.
Postei-me atento. Observei as pessoas que se levantavam, vi o guarda se movendo como se tentasse despertar. Olhei pra fora, a situação ali continuava a mesma. Os estrondos dos trovões caiam ao longe. Por trás de todo o barulho da tempestade, se é que aquilo era uma tempestade, podia ouvir as vozes das pessoas que começavam uma nova gritaria. Muitos choramingos. Fechei meus olhos e concentrei: “Qual o caminho mais lógico de sair daqui?”. O granizo estava forte, as pedras pareciam maiores do que um punho fechado, não havia meios de sair lá fora sem um escudo acima da cabeça. Estávamos em cima de um elevado, nos trilhos, a mais ou menos uns vinte metros de altura. Arriscar sair com as pedras e naquela altura seria morte certa. Ouvi a voz da mulher me chamar: “moço”. Espremi os olhos com os dedos tentando me concentrar e lembrei: “o guarda! Ele deve ter um rádio”. Precisava acordá-lo, ajudá-lo de algum jeito.
Abri os olhos e olhei para a mulher. Ela parecia jovem demais para estar grávida, na verdade, parecia uma adolescente. Seus olhos me fitavam assustados, compreendi que ela já podia me ver. Olhei-a com compaixão e, já muito calmo, tentava transmitir-lhe meu sossego – como eu disse, se eu soubesse que a desgraça daquele dia não estava nem sequer no início, eu mesmo teria entrado em pânico – Por fim ela me falou:
— Moço, você está bem? – a voz era muito frágil, assim como seu corpo.
Sorri para ela e respondi que sim, que estava bem e que tudo iria ficar bem, então lembrei de um detalhe de que ainda não tinha me apercebido:
— O bebê... o seu bebê está bem, digo... vocês estão bem? – disse quase sem intervalo, amaldiçoando-me por não ter lembrando de perguntar.
Desta vez foi ela que me acalmou dizendo que estava bem, que não estava tendo nenhuma contração nem nada do tipo. Perguntei-lhe de quanto tempo estava grávida: “oito meses”. Minha preocupação redobrou.
— Vou me afastar de você só por um instante, ok? – ela prendeu minha mão, como que sentindo receio em abandonar-me – Eu só vou ver se aquele guarda está bem, se não há nada de errado com o homem... Ele está bem ali, veja – e apontei o policial que estava gemendo no chão – ele precisa de socorro e nós precisamos dele, tá bom? – ela sorriu pra mim, e que sorriso lindo ela tinha, não pude deixar de sorrir pra ela também. Naquele momento, o caos não existia, não naquela fração de segundo.
Dirigir-me então para o oficial caído. O homem estava a quatro passos de mim. Tomei-lhe o pulso. Estava forte, normal, só sua respiração estava descompassada. Ele espremia e abria os olhos com força. Sentia dor.
— O senhor está bem? – perguntei primeiramente – Está ferido em algum lugar que esteja sentindo? – tossiu alto e com dificuldade balbuciou uma resposta.
— Eu não estou enxergando nada – foi o que ouvi dele. Pensei no raio que cegou a todos nós e disse:
— Logo vai passar, deve ter sido por causa do último raio... aquele clarão enorme, lembra?
— Raio? Clarão?... Humpf – gemeu ele e ficou se perguntando o que eu estava dizendo. Pensei por um instante e lembrei-me da imagem dele sendo atingido nas costas pelo pesado granizo. “Claro! Como pude ser tão estúpido?” Ele fora atingido antes do clarão, então o que estava acontecendo com ele era decorrente da pancada.
— Você está conseguindo sentir seus braços e pernas? – perguntei como início de avaliação clínica, precisava saber o que estava se passando com o oficial – Onde está doendo? – amaldiçoei-me mais uma vez por não saber primeiros-socorros. Meu conhecimento médico se restringia às séries médicas de TV.
— Humpf – ele sentia muita dificuldade em conseguir falar, estava machucado – Eu... eu estou sentindo tudo, mas não estou vendo... ai... ai... eu estou com muita dor no pescoço – disse por fim com muita dificuldade.
Algumas informações me vinham à cabeça, eu lembrava de alguns filmes em que as pessoas perdiam a visão por traumas muito fortes, me perguntava se isso teria algo a ver com o que estava acontecendo ali.
— Estamos numa situação difícil, será que o senhor pode chamar alguém pelo rádio? – lembrei-me por fim de que pessoas especializadas saberiam o que fazer – Pode pedir socorro?
— Não sei, ainda... ainda não tentei nada – respondeu-me com sofrimento – Pode me ajudar? Pega o walk talk pra mim... por favor...
Olhei para sua cintura e encontrei o walk talk pendurado junto à coxa esquerda. Retirei-o do suporte e o entreguei na mão estendida do oficial. Ele tateou um botão e chamou usando os seus códigos de policial. Ninguém respondia do outro lado. Ele girou um outro botão e o volume de um ruído ficou mais evidente, como o chiado de uma televisão fora do ar. Apertou o primeiro botão e repetiu o pedido de socorro, mais intenso e mais enérgico. Nada se ouviu, exceto o ruído. A tentativa se repetiu por muitas outras vezes e ninguém respondia os pedidos. O oficial estava tão apavorado quanto o resto das pessoas. Quando me dei conta, todos estavam em nossa volta tentando ouvir o que acontecia. Por fim, em meio a muitas lamentações, nada aconteceu.
Eu não desistiria e sabia que tinha de haver um jeito de sair dali, se ao menos o granizo cessasse... e, como se algo atendesse os meus pedidos, a bateção das pedras contra o vagão terminou rapidamente, assim como havia começado. Todos se olharam assustados, alguns já começavam até a sorrir. O silêncio se fez. Por fim o policial disse:
— Se o granizo cessou, temos de aproveitar a oportunidade para sair daqui... me ajude a levantar – disse-me segurando minha mão, já buscando apoio.
Levantei-o com dificuldade, o homem era muito alto e forte, além de pesado. Ele se equilibrou com todo cuidado, escorou-se numa trave e falou:
— Prestem muita atenção! – sua voz soou como se um imperador estivesse fazendo um discurso. Não olhava pra ninguém em específico, seus olhos cegados olhavam para o além – Só vamos sair daqui se cooperarmos um com os outros, entenderam? – todos responderam afirmativamente. Eu já tinha ido em direção à mulher grávida e a tirado do chão. Ajudei-a a ficar de pé e fiquei ali ouvindo as instruções do lado dela. Ela por sua vez não soltou do meu braço – Se todos aqui não saírem, ninguém sai. Nada de pânico, vamos aproveitar que o granizo parou e vamos todos nos dirigir para os fundos. Não tentem sair pelas janelas. O espaço na lateral do metrô é muito estreito e qualquer um pode cair. Estão me ouvindo? – e perguntou como se estivesse dando uma ordem. Todos disseram que sim, quase que simultaneamente – Com calma vamos para o fim do vagão, sem desespero e sem ninguém empurrando ninguém.
Quando eu, a mulher e o policial chegamos do lado de fora ficamos perplexos, sem poder acreditar no que víamos. Fui descrevendo tudo ao nosso redor para o oficial que não parava de me pedir informações. A névoa estava se dissipando e o que eu via não estava em nenhum filme apocalíptico. À minha direita, eu pude ver várias casas em chamas; as ruas estavam abarrotadas de carros batidos: os que não estavam queimando, devido à colisão, estavam quase que soterrados pelo granizo. Acredito que muitas coisas foram destruídas pelos raios e o que sobrou foi derrubado pela chuva de pedregulhos. Mais para o lado do centro, eu via os grandes prédios, ao menos os que ainda estavam de pé: muitos deles haviam sucumbido ao poder dos raios. À minha esquerda, eu via uma enorme cratera, duas vezes maior do que um campo de futebol; ali era uma grande avenida e não restava nada, a não ser um enorme buraco. As pessoas à nossa frente andavam vagarosamente, estavam todos atônitos com a paisagem. Pisavam com cuidado, chutando as enormes pedras de gelo. Alguns levavam as mãos à boca, como que em pânico. A cidade estava praticamente destruída. Via todos os telhados e janelas próximas arrebentados pelo granizo. Estávamos todos em choque. Como era possível algo tão ruim assim acontecer? Descíamos deslumbrados pela vista. Algumas pessoas já estavam chorando, preocupadas com os parentes. Muitos tentavam usar os seus celulares mas nada mais funcionava com aquele caos. Por fim, eu, a mulher e o policial, os três últimos da fila, chegamos à parte baixa dos trilhos, no nível da rua. Continuamos a caminhada em direção à estação, de acordo com as instruções do policial. Nesse momento, vi algumas pessoas correrem em direção aos muros que cercavam as linhas do metrô; parecia que estavam em fuga de uma prisão, saltavam por sobre o muro e o escalavam com dificuldade. Informei ao policial em meio aos gritos e ele simplesmente gritou por sobre as outras vozes:
— Ninguém aqui tem a obrigação de ficar, mas o mais seguro é seguir até a estação – falou no seu vozeirão forte – Temos uma equipe de socorro e alguns funcionários para ajudar-nos. Não adianta tentar ajudar alguém em meio a esta destruição, temos que cuidar da gente primeiro e...
— Você fala isso porque não tem um filho em casa! – gritou uma mulher lá no meio da fila, como se estivesse revoltada além de desesperada.
— Tem razão, minha senhora – respondeu o oficial no meio da gritaria que começava. As pessoas debatiam umas com as outras. Ele continuou mas com mais força – Eu não tenho um filho em casa, tenho três. E assim como todos aqui, eu também estou preocupado com os meus. Não vão conseguir andar pelas ruas destruídas, lembrem-se: não existe um meio de transporte para ser usado. É muito perigoso andar por aí. Entenderam? – dessa vez ninguém respondeu, só fizeram silêncio. Vi mais umas pessoas saírem da fila e seguirem para os muros. Informei o policial e ele me respondeu – estão por suas próprias pernas, Deus os proteja.
Andamos lentamente por um bom tempo e, lá do fundo da fila onde estávamos, pude ver a estação. Os que iam mais à frente já começavam a entrar. Eis que do nada alguém grita com toda força: “olhem aquilo!”. O homem apontava para o céu e sua cara era de pânico. Quando eu olhei o céu, que permanecera fechado esse tempo todo, vi enormes riscos de fogo atravessando as nuvens. Fiquei extasiado, minhas pernas amoleceram e só não caí no chão porque me lembrei de suster a mulher do meu lado. Passei meu braço por sua cintura e a segurei firme. Estavam todos olhando aquilo. O policial me perguntava o que estava acontecendo e eu narrei tudo o que estava vendo. Os riscos se multiplicavam e o céu inteiro parecia um dia de carnaval tomado por serpentinas. Um som de avião a jato pareceu ficar mais alto. Não. Era como um barulho de bomba, aquelas da segunda guerra, caindo dos céus. As chamas foram ficando mais próximas do chão e, inacreditavelmente, eu vi uma chuva de meteoritos atacar o solo.
Deus! Eu não sei o quanto tenho direito de clamar esse nome, mas naquele instante eu o fiz. As pessoas da frente já estavam correndo para dentro da estação apavoradas, gritando. As pedras de fogo socavam o chão com força brutal. Pude ver uma delas atingir o trilho, a uns trezentos metros de nós. Foi como a visão de uma guerra realmente. Assim que a pedra atingiu o solo, os trilhos literalmente explodiram para o alto, espirrados dali com mais um monte de terra, e uma enorme cratera se abriu. Disse ao policial o que tinha acontecido, mas, ao que parecia, ele já tinha compreendido. Ouvíamos um som surdo de explosão a cada segundo. Eu via coisas voarem para o alto quando eram atingidas. O policial foi quem me tirou do entorpecimento, gritando:
— Corram para a estação! – ordenou-nos e segurou firme meu braço.
Aqueles cem metros que nos separavam da estação foram os cem metros mais longos que eu já percorri. Fugíamos desesperados por nossas vidas em meio às pedras destruindo tudo o que restava de pé. Olhava para os lados e via os prédio se espatifando. Uma nuvem de poeira e fumaça começou a se formar de baixo para cima. A vista começou a se fechar novamente. O impacto de meteoritos perto de onde estávamos me derrubou duas vezes e comigo vieram a mulher e o policial. Com muita dificuldade, consegui chegar até a plataforma de embarque. Subimos os degraus de emergência e parei para respirar, foi quando o policial começou a berrar para todos que estavam ali tremendo:
— Todo mundo correndo para a passagem subterrânea de acesso. Rápido! – antes de terminar a frase todos já estava correndo e ele continuou – Isso tudo aqui vai desabar.
Corremos para lá a toda velocidade. Chegamos à escadaria e avisei o policial para ter cuidado, mas o desespero era tanto que, logo no terceiro degrau, ele se desequilibrou e capotou escada abaixo até o chão, quase levando a mulher e eu. Desci correndo com ela, do jeito que podíamos, e fui ver o policial. Ele não tinha ficado desacordado, mas segurava firme a perna esquerda, que parecia quebrada. Nisso uma explosão ecoou por toda a estação. Com certeza essa atingiu-a em cheio. Umas pedras rolaram pela escada e uma nuvem de poeira invadiu o ambiente. Peguei o policial pelas axilas e comecei a arrastá-lo dali de perto da escada. A mulher grávida começou a me ajudar. Estávamos desesperados em busca de salvação. As pessoas iam descendo mais para o fim de uma rampa. Eu conhecia aquele lugar; ali havia um imenso corredor que atravessava a rua até do outro lado, uns cinquenta metros de travessia. Acho que aquele era o lugar mais fundo a que conseguiríamos ir. Outra explosão me tirou do raciocínio, mais perto, mais alta. A nuvem de poeira ia aumentando, diminuindo a visibilidade e fazendo todo mundo tossir compulsivamente.
— Aqui, aqui! – gritou o policial que se arrastava no chão tateando alguma coisa – Molhem algumas peças de roupas aqui nesta água. Agora! – ordenava ele, que já havia tirado a parte de cima da farda, encharcando-a – Ponham por sobre a boca e nariz. Isso irá filtrar o oxigênio. Rápido!
Todos obedeciam com veemência cada qual pegando uma peça de roupa. O chão estava quase todo tomado pela água que descia dos degraus. Algum cano devia ter estourado em algum lugar. Eu tirei o meu paletó, encharquei-o por inteiro e o dividi com a mulher grávida. Lá em cima, o bombardeio de meteoritos continuava; em baixo. continuávamos a nos mover lentamente para o meio da passagem. O ar ia se engrossando de poeira e mesmo com o tampo em nossas bocas era difícil respirar um ar puro. O pandemônio estava formado...
Até aquele momento, nada me dizia que estaríamos salvos. Eu até imaginava que íamos acabar morrendo naquele lugar. Todos ali estavam exaustos. Lembro-me de ouvir explosões e barulhos estranhos por mais meia hora antes de apagar num longo sono. Quando acordei, devido aos gemidos intensos de algumas pessoas, percebi que estava abraçado com a mulher grávida, cujo nome eu sequer sabia. Alonguei o meu pescoço. Estávamos sentados, recostados numa lixeira caída. Ela acordou com o meu movimento. Sua cabeça estava sobre o meu ombro direito. A poeira recobria o chão, algumas pessoas estavam em volta de uma fogueira improvisada e tudo o que eu podia ver vinha dessa claridade. A mulher me olhou e eu sorri para ela. Ela abriu aquele maravilhoso sorriso e me perguntou se eu estava bem. Respondi um “claro, e você?”. Ela disse que sim e nós nos pusemos de pé, depois de espreguiçarmos bastante. Por instinto, eu procurei o policial e o encontrei deitado, com uma perna estendida e o casaco do uniforme a cobri-lo. Olhei sua perna e vi uma tala prendendo-a esticada. Ao lado, dele um homem franzino lia um panfleto de loja.
Olhei para a mulher e ela para mim. Depois de me sorrir novamente, ela me abraçou, apertada e longamente. Fiquei surpreso com o gesto, mas retribuí o abraço. Ficamos daquele jeito uns bons minutos. Sentia o perfume de seus cabelos ainda meio limpos, e o toque de sua pele era muito bom, macia como a de uma criança. O abraço foi se desfazendo, ficamos de mãos dadas um olhando para o outro e, por fim, ela me disse:
— Obrigada por tudo que fez por mim até agora. Nem tive a chance de agradecer. Sei que parece loucura, mas não queria morrer sem saber o seu nome.
— Que isso! Não vamos morrer. Você precisa cuidar do seu garotinho...
— Como é que sabe que vai ser menino? – dei com ombros sem saber por que havia dito aquilo, e ela me disse – Sabe, sempre pensei que meu filho se chamaria João, como meu pai, mas... depois de hoje, se eu chegar a ter meu filho – tentei interromper dizendo um “não diga isso”, mas ela selou meus lábios com a mão e concluiu. – Eu ia dizer que, depois de hoje, quero dar seu nome ao meu filho – e seus olhos se encheram de lágrimas.
Não pude deixar de abraçá-la e agradecer dizendo que não merecia, mas ela insistiu e perguntou o meu nome novamente. Disse meu nome e ela falou que ia ser perfeito. Sorri pra ela e fiquei ali abraçado com aquela linda mulher. Por fim, não querendo que o instante se diluísse, perguntei:
— E qual é o seu nome, mamãe do meu futuro xará? – perguntei-lhe feliz.
— Eu me chamo Vida – e não pude deixar de rir alto com a ironia do destino.
Mas tudo tem um fim e alguém falando alto chamou a atenção de todos.
— Está tudo destruído lá fora, não há uma viva alma por perto – disse um homem que voltava segurando uma lanterna.
— Não pode ser. Tem que ter algum sobrevivente – respondeu um outro senhor que levantou de perto da fogueira.
— Eu estou falando. Pergunta para o Marcelo que foi comigo...
— É, é verdade – começou a confirmar o tal Marcelo que vinha logo atrás do primeiro homem. – Não tem sequer um cadáver nas ruas. Está tudo deserto.
— E está começando a nevar – e todos se olharam assustados – o que foi gente? Até parece que nevar é algo de estranho depois do que aconteceu hoje.
— Tem razão, tem razão... – disse o senhor a quem os dois homens reportavam a notícia. Este ficou de cabeça baixa, segurando o queixo, e por fim falou: – Precisaremos de provisões, estes chocolates e salgadinhos de máquina não vão aguentar par sempre.
— E onde vamos arrumar isso, Beto? – perguntou uma senhora que parecia, pela intimidade e afeto, ser a mulher do homem que liderava os outros.
— Tem um monte de lojas destruídas aí fora – começou a responder o tal Marcelo – Só que com a escuridão e o frio, é melhor a gente pegar as coisas que precisaremos de manhã cedo.
— Se está nevando, temos que pegar os suprimentos agora. A temperatura vai cair muito durante a madrugada – disse a voz forte e grave do policial que ia despertando. Ele se ajeitava com dificuldade, ajudado pelo homem que estava do seu lado.
— É verdade – respondeu Beto. – Temos que pegar agasalhos...
— E material pra aumentar esta fogueira – completou o policial.
— O senhor já está bem, oficial? – perguntou a esposa do Beto ao policial – já está enxergando?
— Não, senhora... Vejo só vultos. Vejo o clarão das chamas e escuto o seu crepitar. Acho que devemos aumentar este fogo logo.
Fiquei ali, abraçado à Vida, observando o desembolar das coisas. As pessoas estavam se organizando eficientemente. Ao que parecia, Beto e o policial Freitas é quem estavam comandando tudo por ali. O rapaz franzino que estava ao lado do oficial era um enfermeiro. Ele estava sendo ajudado por uma mulher jovem que era escoteira. Juntos, os dois tinham suturado todos os cortes, limpado todas as feridas e feito talas para todos os que precisavam, inclusive o meu pequeno corte na cabeça havia sido limpo e devidamente estancado. O que aconteceu foi que, quando eu despertei, já era noite, por volta das oito, e tudo ali já estava sendo arrumado pelos outros. As pessoas que tinham corrido para aquele abrigo eram todas do metrô, o que eu, particularmente, achei muito estranho. Éramos no total, quarenta e cinco pessoas. Já estava tudo resolvido, pronto para o grupo sair e buscar suprimentos quando a hora derradeira chegou.
O Cabo Freitas explicou o que cada um deveria fazer. Acontece que, quando o homem, aquele que voltou com as notícias e que se chamava Gil, se preparou para sair com a comitiva, um estrondo gigantesco se fez. As pessoas se abaixaram instintivamente, incluindo eu. Agachei-me, usando o corpo de escudo para a Vida. O silêncio se fez. Estavam todos muito atentos. Em minha mente, eu vivia milhares de catástrofes que ainda não haviam ocorrido. Perguntava-me qual seria a próxima. Mas, tolo que sou, não podia prever o que estava por vir. Onde em sã consciência eu imaginaria algo assim? O silêncio foi quebrado por rugidos e rosnados estranhos, como se muitos lobos estivessem por perto. Não dava para definir, parecia um som animal misturado com um barulho de máquina. O que posso dizer é que era um som horrível.
— Ninguém diz nada! – disse Freitas quase que aos sussurros. Como estava quase do seu lado, pude ver que ele sacava sua arma, que até então não tinha tido nenhuma utilidade. – Não façam nenhum barulho e, principalmente, não entrem em pânico.
Era muito fácil dizer algo assim e imaginar que ninguém se espantaria com o que estava pra acontecer. Os rosnados foram aumentando, como se algo estivesse espreitando, cada vez mais perto. Aquele som metálico, estridente e grave ao mesmo tempo, uma espécie de bufar. Lembro-me como se fosse agora. A situação ia ficando pior; o som se aproximava e estava cada vez mais alto. Do nada, um som sobressaiu pelo outro lado, pelo qual entramos. O quer que fosse que estivesse rondando lá fora, estava nos cercando, planejando uma emboscada. Uma mulher começou a choramingar baixinho; um homem que estava com ela tapou-lhe a boca imediatamente. Outras pessoas começaram a se movimentar, se espremendo contra a parede. Uma adolescente não se conteve e soltou um grito. Um urro sobrenatural sobreveio lá de fora e todos quebraram o silêncio com gemidos de pavor. Outro urro, só que mais próximo e assustador, veio pela outra entrada. Estávamos em pânico, completamente despreparados. Em meio àquela confusão, ouvi a voz forte de Freitas me chamar. Olhei para ele ainda sem me levantar, minhas pernas tremiam. Arrastei-me até ele, trazendo comigo a Vida. Já próximo a ele, perguntei, gaguejando de medo, o que ele queria. Ele estendeu-me a mão e disse:
— Tome, pegue isso. Sabe usar? – ele se referia à arma automática, que eu só conhecia de filmes de ação.
Respondi que não e que jamais pensara na vida usar algo assim. Ele tacou-me a verdade na cara.
— Ou você usa, ou morre. O que está lá fora, o que quer que seja isto, vai entrar aqui e nos matar – suas palavras me deixavam cada vez mais apavorado. – Eu não estou vendo quase nada, não posso arriscar disparar isso e atingir alguém.
Entendeu? – balancei a cabeça positivamente de forma frenética, como se tentasse me convencer disso.
Ele me segurou com sua mão forte, como a me trazer de volta à realidade, e me mostrou sucintamente como destravar e usar a arma. Tirou do seu cinturão mais dois carregadores e algumas balas e me mostrou como recarregar a arma. Depois pegou minha mão e armou-me com aquela coisa. Apertou minha mão que segurava a pistola com ambas as mãos e disse:
— Aponte sem hesitar e dispare! Não pense, só faça, isso será a diferença entre a vida e a morte – eu ficava olhando para ele como a pedir que não me desse tal missão e, por fim, ele disse: – Se tem medo de fazer por você, faça por ela e pelo filho!
Aquilo me transportou para um outro mundo, um em que eu não sentia o medo como as pessoas sentiam, não temia mais por minha vida, mas somente pela dela. E foi nesse exato momento que um vulto adentrou o nosso abrigo, pela entrada do lado oposto à qual eu estava, seguido de um rugido rasgado de fúria. Vi duas mulheres se levantarem para correr e a sombra passou por elas, partindo-as ao meio. O jato de sangue voou para todos os lados. Um homem que segurava uma barra de ferro levantou-se com a barra por sobre a cabeça, pronto para usá-la. Caiu quase que imediatamente depois de ter levantado. Não vi como ou o que o tinha atingido, mas tive certeza de que estava morto. A sombra parou bem no meio do salão em que estávamos e, pela primeira vez, pude ver, com a nitidez que me era possível, a forma horrenda de nosso algoz. Estremeci por inteiro. Era algo disforme, longe de tudo em que meus olhos podiam crer. Tinha o tamanho de dois homens e seu corpo era muito, mas muito estranho. Não sabia se aquilo tinha pés ou patas, nem sequer se algo o sustinha no chão. Era muito assustador. O que mais me recordo e que mais me chamou a atenção naquilo foi o que eu pude distinguir como sendo seus olhos. Eram três, ou um, dividido em três pedaços. Um do lado do outro em forma de “V”. Eram escuros e avermelhados, quase pretos. – Meu tempo de descrição daquela coisa não pode ser maior do que aos segundos que se sucederam. – Mal bati meu olho naquela criatura e um estrondo se fez atrás de mim. Senti as mãos da Vida me envolvendo e lembrei-me do porquê de eu estar segurando aquela arma. Virei-me imediatamente na direção do urro que se aproximava e dei de cara com uma criatura similar à primeira, que vinha, ao que parecia, presa ao teto, sustentada por sei lá o quê. A única coisa que pude distinguir, naquele átimo, foram aqueles olhos horrendos, e foi lá que eu mirei toda a minha coragem.
Pow, pow, pow... Os primeiros três tiros fizeram com que a coisa berrasse e desabasse do teto. Aquilo esperneava no chão, se debatendo, se contorcendo e gritando muito. Aquele som metálico e infernal, que fez com que meus ouvidos quase explodissem. Vendo aquilo abatido pela arma que eu segurava, não pensei duas vezes. Apontei-lhe a arma e descarreguei o pente na criatura. O bicho estrebuchou e parou. Comecei a esboçar um sorriso, quando o grito histérico de Vida me trouxe ao quadro de destruição. Virei-me e vi a primeira coisa vindo pra cima de nós. Antes, porém, aquilo passou por cima de um outro sujeito e o despedaçou no mesmo instante. Voltou-se para mim, e eu sabia que aquilo me olhava, e veio com tudo. Mirei nos olhos do bicho como tinha feito com o outro e puxei o gatilho. “Maldição!”, berrei comigo. A arma estava descarregada. Procurei o outro pente em meu bolso, enquanto soltava o que estava na arma. O desgraçado ia me triturar, quando alguém tacou-lhe uma tora de madeira pegando fogo. Era uma jovem que usara o suprimento da fogueira em nosso benefício. A coisa rodou como louca. Aquilo parecia inflamável, pois logo começou a arder em chamas. Aproveitei o ensejo para recarregar a pistola. Mas não precisei usá-la. A criatura rodopiava feito um peão, muito rápido. Acho que aquilo fez com que ela se incinerasse rapidamente, tombando para um dos cantos.
O inferno só estava começando, mas humanos, em grau intenso de provação, provaram que o aprendizado é quase que imediato. Os urros vieram novamente, mas mais fortes do que os primeiros que já tinham vindo. Sabíamos que deviam ser mais criaturas. As pessoas se levantaram e sem nenhuma hesitação começaram a pegar paus e placas em chamas. Foi Beto quem gritou:
— Usem o fogo neles, matem esses desgraçados! Mirem nos seus olhos!!!
Aquele foi o nosso urro de guerra. Homens e mulheres se armavam de tochas improvisadas e berravam. Parecíamos primatas se preparando para um batalha entre tribos rivais. Eu gritava junto, pronto para dar minha vida por aquela mulher. A pancadaria não demorou a reiniciar. Duas criaturas entraram pelo meu lado e outras três, pelo outro lado...
Aquele foi o meu primeiro dia neste mundo devastado em que estou vivendo. Hoje, quase duas semanas depois, posso afirmar: aqueles monstrinhos são o que há de menos perigoso por aqui. Sinto-me inútil falando assim, rindo daquelas coisas. Afinal, mais da metade de nós morreu naquele dia. O Marcelo e o Gil estavam nessa lista. Com muita dificuldade, eu, Vida e outras treze pessoas, incluindo Beto e sua esposa, o Cabo Freitas, o enfermeiro e a escoteira, saímos de lá. Nossa comitiva não chegou nem ao segundo dia direito. Íamos para uma base do exército que ficava para o norte de onde estávamos, por sugestão do policial. A ideia era ter com o que nos defendermos. Atravessávamos a cidade com dificuldade, devido aos vários obstáculos, mas conseguimos chegar bem perto de nosso objetivo quase ao anoitecer. Não havia mais ninguém na cidade. Às vezes gritávamos por alguém e não ouvíamos resposta nenhuma. O pessoal ia juntando o que via pela frente e levávamos muitos suprimentos em carrinhos de supermercado. A escoteira teve a brilhante idéia de usarmos garrafas de whisky como coquetéis molotov. Naquele dia, a visão de Freitas estava quase que normal Ele mesmo se conduzia, quando ouvimos novamente aquele estrondo inicial de confusão. O sol já estava quase se pondo e não estávamos ainda com armas em mãos. Nos abrigamos em baixo de um viaduto, quase em frente à base militar, e acendemos as nossas tochas e preparamos também as bombas de whisky. O que veio para cima de nós naquele início de noite foi um bando de bichos voadores. Menores do que os que vieram por terra, mas muito mais rápidos e mortais. Outras cinco pessoas morreram naquele embate, incluindo o Cabo Freitas, que acabou por salvar a todos os outros, e o nosso enfermeiro. Estávamos vivos mas apavorados. Eu, particularmente, fui quem sentiu mais a morte do policial: estava me afeiçoando a ele. Ele morreu bravamente para nos salvar. Sozinho, com sua pouca visão e uma perna quebrada, eliminou toda a comitiva que restava antes de ser assassinado pelo último dos monstros voadores. Passamos aquela noite sob vigília, lamentando as nossas perdas e nos perguntando o porquê daquilo tudo; discutimos como sobreviver àquelas coisas; criamos estratégias e elaboramos formas de sobreviver.
No dia seguinte, já tínhamos concluído que as criaturas só vinham à noite, ao menos era o que pensávamos até então. Levamos o plano do Freitas adiante e entramos na base militar, sempre na esperança de encontrar alguém. Achamos os depósitos das armas e munições e tivemos que aprender sozinhos como usar todas aquelas metralhadoras e pistolas. Não havia muito mistério, no fim todas tinham basicamente o mesmo sistema. Optamos por fazer daquela base a nossa morada provisória. Montamos um esquema de defesa e ficamos preparados para a noite que viria. Ah, não existiam mais sinais de rádio e celular e nenhuma TV captava nada. Estávamos isolados do resto do mundo, se é que existia um resto. O mais importante era que cuidávamos um dos outros, como se para cada um só o outro existisse. A noite foi caindo e nos despedimos antes de começar a penumbra. Naquele terceiro dia, o ataque foi muito pior. Ele veio de cima, pelas criaturas voadoras; por terra, com os primeiros monstros; e debaixo da terra, por outras coisas. Aquele ataque nos devastou. Sobramos eu, Vida e a escoteira, que se chamava Jasmim. Pegamos o que podíamos e fugimos dali no dia seguinte. A tristeza em que ficamos e o desespero logo foram trocados por instintos de sobrevivência. Por mais que pensássemos que não teríamos chances, por sermos somente nós três, foi exatamente isso que nos salvou. No quarto dia, sobrevivemos sem nenhum embate, apenas nos escondendo e fazendo silêncio. Observávamos de longe com um binóculo de visão noturna e, nos três dias seguintes, aprendemos muito sobre aquelas criaturas. De tanto observar, acabamos por entender o que faziam e como. Seguíamos as coisas de longe e encontramos alguns dos esconderijos daqueles monstros, quando amanhecia o dia, entrávamos lá e destruíamos tudo. No sétimo dia, encontramos uma caminhonete em bom estado. No oitavo dia, abastecemos o carro e partimos dali para uma cidade litorânea. Tínhamos a esperança de lá encontrar alguém, mas nada.
Meu relacionamento com Vida já havia chegado a um sentimento forte. Ficamos juntos. Sabia mais coisas dela do que de qualquer outra mulher com quem eu já tivesse me relacionado. Jasmim, que só tinha vinte anos, era como uma irmã mais nova para nós. Éramos muito felizes juntos, dentro daquele padrão de vida que levávamos. Éramos como os três mosqueteiros, só que sem o D’Artagnan. Vivíamos um pela vida do outro. Amávamos uns aos outros como nunca antes havíamos amado alguém. Esperava ansioso o dia do nascimento do filho da Vida que, agora, seria então meu filho. Nossa vida era corrida. Tínhamos que nos mover todas as manhãs para um lugar novo, mas era muito bom tê-las por perto. Não achávamos mais nada estranho, estávamos nos adaptando àquela tragédia e nada nos faria escolher outro caminho, outra vida. Aprendemos à força o valor da vida e nada mais importava. Nunca mais reclamei de nada e estava grato por aquilo. Mas o mais importante que aprendi, foi que tudo era perecível. Nem eu, nem as meninas viveríamos para sempre. Estávamos preparados.
Esse dia não demorou a chegar e fomos então separados. Impressionantemente, ao início do décimo primeiro dia, algo horrível aconteceu. Estávamos viajando pela estrada, quando umas criaturas, desta vez seres humanóides, apareceram em nossa frente, em plena luz do dia, e interceptaram nosso veículo, fazendo-o tombar. Fiquei muito ferido na capotagem, quase desacordado, e a única coisa que pude fazer naquele dia foi observar.
Primeiro, arrancaram-me do carro tombado e me arremessaram para o outro lado da estrada. Fiquei ali caído de bruços, sangrando, enquanto eu via os seres retirarem de lá a minha Vida e Jasmim. Eles se comunicavam em uns ruídos estranhos, como se aquilo fosse a língua deles, e gesticulavam apontando para Vida. Tentei me levantar, mas não existia força em mim, nem para gritar. Minha cabeça estava explodindo de dor. Por fim, eles levantaram Vida como se ela fosse um pedaço de carne e uma luz muito brilhante, vinda do céu, arrastou-a para longe de minha visão, até que ela desapareceu. Antes de sumirem, um deles apontou a barra para Jasmim e efetuou um disparo de uma luz incandescente que atingiu a menina bem no centro do tronco. Jasmim voou uns metros em minha direção e caiu de olhos arregalados, olhando para mim. Seus olhos espantados foram a última coisa que eu vi antes de desmaiar.
Digam o que quiserem de mim, julguem-me o quanto for necessário, nada vai me dissuadir. Este relato é o meu registro para que alguém saiba o que aconteceu com todos nós. Quero que, se uma nova vida florescer na Terra, que esta seja o oposto de todos que nela viveram, que estes sejam pessoas desprendidas de seus egos, desejos e de egoístas individualidades. Agora sei que o que ouve conosco foi somente a colheita do que plantamos.
Agora que minha irmãzinha está melhor e que pode se cuidar, eu irei até as últimas consequências, darei um basta nessas coisas. Não dormi sequer um minuto nesses cinco dias. Passei esse tempo comigo e com o que as pessoas chamam de Deus. Entendi todos os princípios da vida e da morte. Sei também que não sou um bom cristão. Sinto a presença viva da Vida, sei que ela está viva em algum lugar deste planeta e sei que continuará viva até que nosso filho nasça. Avisei Jasmim de meu intuito e, de todas as formas, ela tentou me impedir. Decidi que, se Deus existe e quer que aprendamos o valor da vida, eu usarei a minha vida, esta única de que estou tão grato, para acabar com esse mal, que só visa o nosso fim. Vou salvar Vida, nem que para isso tenha que dar a minha vida. Isso tudo vai muito além, além de mim, além de todos os que morreram. Não faço isso pelo meu desejo de tê-la comigo. Faço isso pela vida que ela trás dentro de si. Sei que este pode ser o novo começo para a existência humana. Agora despeço-me agradecendo mais uma vez o que quer que seja que tenha me dado esta oportunidade de aprender.
Amo você Vida, amo você Jasmim e amo meu futuro filho. Se faço isso, é para que vocês possam um dia ler este manuscrito, livres de todo o mal que um dia plantamos e que, agora, tenho a função de afastar de vocês. Como meu último desejo, digo: vivam!

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