“Aqui entre nós, somente Strilg
Pirgenti tem noção da imensidão desses inesquecíveis acontecimentos. Embora ele
fosse apenas uma criança que acompanhava os pais num resgate de corpos, teve
maturidade suficiente para ver e entender toda aquela chacina desmedida. Quando
reconto o episódio relembro o cheiro acre e ácido no ar. O cheiro ferroso do
sangue, o odor podre da carne decomposta. Lamentável toda aquela perda... todos
os amigos, parentes e pessoas conhecidas... mas ao que tudo sempre indica, de outra
forma não haveria de ter sido. Quantos não são os caminhos dessa vida? Alegrias
e tristezas sempre rentes à realidade de se viver. Essa oscilação constante de saúde
e morte faz-me ainda penar. Mesmo depois de tanto tempo ainda continuo a
lamentar por isso... não, realmente ainda não me acostumei. Muito me espanta
quantos de vocês ainda duvidam desse meu relato. Quantos de seus parentes e
amigos não se foram naqueles dias? Quantas não foram as famílias perdidas no
tempo, condenadas a vagar pelo nada piedoso esquecimento? Hoje ao menos temos
companhia dos forasteiros do distante reino de Terra. Rogo para que, ao menos
eles, dêem a devida atenção para essa verdadeira história. Espero que um dia
esse relato valha para alguma coisa. Na verdade até sinto isso. Aprendi a ouvir
aquela voz que sussurra dentro de meu peito. Aprendi a sentir e a entender
alguns dos indícios da vida. Aprendi isso e muito mais com o Herói, aquele
sábio homem. Prestem muita atenção ao que vou lhes contar, até porque – queridos
visitantes – o protagonista dessa aventura veio também de vosso reino. E muito contou-me
de lá. Esse homem – graças às forças divinas – fez o favor de mudar o curso de nossa história. Se
cá estamos hoje – bebendo nessa taverna, longe das muralhas da grande cidade, despreocupados
das habituais, mas obsoletas ameaças – é tudo graças a ele. O mais bravo entre todos os
guerreiros que já existiram, o homem entre os homens por todos os nove cantos
do Multiverso. Homem sem igual que, por mais extraordinário que fosse, nunca
destratou um outro digno de respeito. Generoso, honesto, de humildade sem
igual, valoroso, destemido, mais sábio que todos os sábios reunidos em
conselho, o proclamador da temperança, nosso único e singular herói. E minha
eterna gratidão ele sempre haverá de ter. Em todas minhas possíveis horas para
oração, volvo parte destas preces à sua pessoa. Devo-lhe minha vida e grande
parte de meu conhecimento e prática. Se hoje – beirando o fim dos meus agitados
dias – fui um homem justo e digno de respeito, tudo devo por um dia ter cruzado
meu caminho com o dele.
Mas chega de delongas, vamos
direto aos fatos, nossos novos amigos visitantes não viajaram de tão longe para
nada.
Quando eu era um jovem – um recém
adulto – e Strilg era apenas um garoto, nossos reinos estavam abalados. Como
sempre, vivíamos os dias de agonia causados pela ganância dos seres. Assim como
em vosso reino existe a ânsia pelo poder, aqui também encontramos esse tipo de
infelicidade. Como já devem ter sido informados, hoje, possuímos um rei único
para todos os três reinos aqui no continente de Trínah. Não era bem assim no princípio da história que vou lhes
narrar. Naquela época todos os três reinos de Trínah estavam sob constantes
ataques dos povos das ilhas do sul – um grande aglomerado de ilhas esparsas
onde vivem ainda hoje os Athanuls: o
povo guerreiro do sul. Os três reis dessas nossas terras, depois de séculos de
guerras entre si, finalmente em prol de um bem comum, uniram-se contra as
invasões estrangeiras depois de assinarem um acordo de paz. Muitos e muitos
anos se passaram e as invasões se estenderam pelos séculos. Às vezes chego a
pensar se o que nos aconteceu não foi apenas um castigo divino por todas as
atrocidades que cometíamos. Existem muitos assuntos envolvidos por trás de toda
essa guerra; conspirações, guerras internas, traições e etc. – acreditem-me, vocês
não gostariam de viver aqui naqueles dias – mas o mais importante de tudo isso
foi como ela se resolveu. Há quase um século atrás, o confronto se cessou
repentinamente, praticamente de um dia para o outro, como se nunca tivesse se
iniciado. Nossos exércitos estavam preparados para um enorme combate que
aconteceria num daqueles dias. Os Athanuls já haviam alcançado nossas praias ao
sul e ao leste e estavam agrupados aos milhões para finalmente tomarem nosso território.
Embora tivéssemos a vantagem geográfica, nada garantia que venceríamos aquele
embate. Nossas tropas se espalhavam por todo o continente, agrupadas estrategicamente
para deter e dizimar o inimigo. Igualávamos em número e poder de combate, mas
os Athanuls eram conhecidos por nunca morrerem sem antes matar três dos nossos.
A história do “três por um” correu nosso continente – espalhando-se como o
vento – desencorajando muitos dos nossos homens. Pois então, num único dia – mais
precisamente da noite para o dia – tropas inteiras começaram a desaparecer. Milhares
de homens simplesmente sumiram. Os aliados dos nossos três reinos – mais conhecidos
como Tríade de Trínah – foram sendo obliterados um a um.
Milhões desapareceram naquela única noite. Dois terços da tríade foram
dizimados, mas isso só ficamos sabendo posteriormente. No início, as notícias vinham
por mensageiros chegando de todos os lados. Todos traziam as mesmas novas: “as
tropas não estão mais lá”. Os mensageiros repetiam seus relatos minuciosamente.
Todos eles vasculhavam o entorno dos acampamentos onde antes havia milhares de
homens e nada encontravam: “Não deixaram vestígios, nada...” Toda a ilha de
Trínah abateu-se temerosa e as péssimas notícias não paravam de chegar. Primeiramente
estávamos desesperados, imaginando como morreríamos facilmente nas mãos dos
estrangeiros por falta de protetores. Acreditávamos que nossas tropas estavam
sendo massacradas pelo próprio inimigo, não pensávamos de outra forma, não fazíamos
ideia. Havíamos perdido os melhores guerreiros dos três reinos, estávamos fracos,
indefesos. E esse pensamento não era só nosso. As ilhas do sul recebiam as
mesmas informações sobre nossa condição. Apressaram-se a reunir o total de seus
homens combatentes agrupados em nosso litoral e mandá-los todos de uma só vez numa
única investida para, por fim, tomarem todas as nossas extensas terras.
O que ninguém
imaginava era aquilo que estava por vir. Nossos mensageiros relataram que em
nossas praias, sequer um só ponto de toda a costa sul e da costa leste estava
desprovido das embarcações inimigas. Que os guerreiros do sul contavam com mais
homens do que um dia houve nessas terras... Imaginávamos, inevitavelmente, um
fim rápido e indolor. Da costa até o primeiro dos nossos reinos – o mais ao sul
– eram exatamente três dias de caminhada em marcha lenta, mas ao fim do
terceiro dia, quando todos já rezavam aos deuses por suas almas, nada,
absolutamente nada aconteceu. E, do cair da noite anterior até o alvorecer do
outro dia, todos os sons se cessaram. Todos os invasores haviam também
sumido..."